Síndrome de carência de protagonismo
Em algum momento, você terá menos mando e influência que hoje, até mesmo em sua família e nos negócios, então conhecerá o significado de ‘ostracismo’

Um dia você é chamado de “doutor”, “comandante” , “chefe” ou seja lá qual for o título de autoridade civil ou militar. No outro, é só o seu Fulano da caminhada matinal, a dona Sicrana do pilates das nove, a voz que o neto chama para ajeitar o Wi-Fi. E tudo bem! Durante anos - décadas, talvez - você construiu, decidiu, produziu,liderou. Resolveu problemas que pareciam montanhas. Carregou a casa, a empresa, o Estado - o mundo, quem sabe - nas costas. Teve horário, metas, gente que dependia de você. Chamavam, você respondia. Ordenava, e o mundo obedecia. Ou quase.
Mas enquanto o mundo obedecia, havia um outro mundo que crescia - e que, muitas vezes, você mal viu crescer. Filhos que aprenderam a andar, falar, sofrer e se virar sem você. No fundo, você prometia a si mesmo que um dia compensaria o tempo. Esse dia chegou. E, para sua surpresa, não é mais com os filhos - é com os netos.
O BOTÃO “SAIR”
Agora, o crachá foi entregue, o e-mail corporativo desativado, a agenda virou um caderno de aniversários e exames de rotina. Um clique silencioso no botão “sair”. E então começa o verdadeiro login: o da vida que existia por trás da função. No início, é estranho. Acordar sem pressa. Almoçar sem o celular à mesa. Não precisar provar nada a ninguém. Parece perda. Mas, com o tempo, a gente descobre que é ganho.
É quando o ego - aquele bicho barulhento e faminto - finalmente vai dormir mais cedo. As vaidades começam a se despentear. E o poder, coitado, vira uma piada interna entre lembranças e ironias. Há uma liberdade secreta - e quase sagrada - em deixar de ser importante. Depois que os holofotes se apagam e as salas esvaziam, sobra um silêncio que assusta no início, mas logo revela algo raro: a chance de ser inteiro sem precisar ser centro. É nesse intervalo entre a grandeza e o anonimato que mora uma liberdade que poucos aceitam - a de não precisar provar mais nada.
A VIDA DE EX
Ser ex-presidente, ex-diretor, ex-artista da moda, ex-chefe temido ou ex-qualquer-coisa relevante exige mais do que currículo. Exige maturidade para suportar o eco do próprio nome dito cada vez menos. Há quem aceite essa travessia com dignidade, transformando passado em legado e presente em sossego. E há quem se agarre a qualquer manchete, a qualquer aplauso residual, como quem se recusa a apagar as luzes do palco mesmo quando a plateia já foi embora.
Que a vida pregressa sirva de boas lembranças, orgulho e referências - não de prisão.Viver de glórias passadas é confortável, mas perigoso. Morar no passado é correr o risco de se tornar o próprio fantasma do metrô no filme Ghost - aquela alma inquieta, presa entre estações, que assombra os outros no vagão porque não consegue aceitar que o tempo passou.
DONO DO CACHORRO
Há dignidade em reconhecer a importância que se teve. Mas há ainda mais liberdade em não precisar provar isso o tempo todo. Nesse novo tempo, surgem outras rotinas: o almoço é o jantar sem pressa, e sem horário, a leitura sem prazo, a escuta sem interrupção.
Aparece uma nova importância - mais discreta, mas muito mais verdadeira. Porque já não importa o que você faz. Importa quem você é. Agora, você é o dono do cachorro. E as pessoas da praça nem sabem seu nome - quanto mais o que você já foi. E não faz falta. As ilusões do “ser alguém na vida” se dissolvem como espuma. E o que sobra é a essência: O prazer de uma conversa boa. A alegria de ensinar sem cobrar. O tempo de ouvir mais do que falar.
LEVEZA DO “DESNECESSÁRIO”
A leveza de não ser mais “necessário” é descobrir que isso é liberdade, não desprezo. Talvez o que antes era ausência agora vire presença. A pressa que te levou embora dos aniversários dos filhos cede lugar à calma de montar quebra-cabeças com os netos. O conselho que você não deu aos 17, você agora sussurra aos 7 - com voz mais mansa, com menos urgência, com mais amor. Os netos não são só a continuação da linhagem: são a chance de acertar com mais ternura onde antes só houve esforço e intenção.
A verdadeira grandeza talvez esteja em saber sair de cena. E permanecer inteiro. Quem já foi importante, se souber deixar de ser, talvez descubra que o anonimato é só outra forma de liberdade - menos barulhenta, mas muito mais leve.
VIDA SEM SCRIPT
Alguns chamam de aposentadoria. Outros, de desaceleração. Mas talvez seja apenas o início da verdadeira vida adulta: aquela em que você vive, enfim, para si mesmo - sem script, sem performance, sem palco. E é nesse silêncio do “já fui” que se escuta, pela primeira vez, o que você sempre foi.
Sem cargo, sem salário, sem plateia. Só sabedoria. E paz. Porque a verdadeira importância pode estar, agora, em ter o tempo inteiro para fazer coisas simples que levam à felicidade: Brincar com um neto. Passear com o cachorro. Ir sozinho ao cinema Comer o que quiser e quando quiser. Conversar com velhos amigos. Sentar à mesa com quem sempre esteve por perto — mesmo quando o mundo exigia que você estivesse longe. É a liberdade de quem já foi importante. E, enfim, aprendeu a ser presente.
O autor é comandante de linha aérea com mais de 20 mil horas de voo no Brasil, América do Sul, EUA, Europa, Ásia e África.
Profissão: avô!
- O texto acima poderia ter sido escrito pelo aposentado Luiz Frare (na foto, com os netos). Ele foi diretor do Banestado, secretário de Finanças da Prefeitura de Cascavel e vereador, entre outros cargos de comando. Esteve no poder e soube sair dele com leveza.
- Em determinada edição do evento “Café com Pitoco”, Frare aguardou pacientemente a sua vez de se apresentar. É aquele momento em que os convidados descrevem suas atividades: empresário, agricultor, diretor, gerente, profissional liberal, etc. Ao chegar sua vez de falar, Luiz Frare disse: “Tenho a melhor profissão do mundo, o melhor cargo que poderia exercer na vida, sou cuidador de netos”. Pode-se dizer o que quiser do Frare, inclusive afirmar que ele “não tem mundial”, como bom palmeirense que é. Só não se pode dizer que sofra da “síndrome de carência de protagonismo”.