
Formigueiro no Gramado
Relato de uma viagem que percorre as cicatrizes da enchente e os encantos escondidos no interior da “BC da Serra”; a zona rural de Gramado (RS) vira refúgio para quem busca vida para além das filas, congestionamento e turismo de vitrine

Entre os destinos que muitos cascavelenses cogitam visitar nas férias de julho está a serra gaúcha, em particular Gramado e suas vizinhas de “parede e meia”, Canela e Nova Petrópolis. O Pitoco esteve lá agora, no final de maio.
Se preferir o “asão”, é possível aterrissar no Aeroporto Salgado Filho, na capital gaúcha, a partir de Cascavel com escala em Curitiba após pouco mais de quatro horas, pagando algo em torno de R$ 4 mil nos bilhetes para dois passageiros. Porto Alegre e Gramado são separadas por apenas 103 quilômetros.
A opção rodoviária direto para a serra consome quase 20 horas de busão. Viagem de carro, nossa opção, de 12 a 15 horas, conforme o pé direito do condutor e o número de paradas.
Na opção “você ao volante” é prudente analisar o percurso. Quase todos os caminhos levam à serra, mas nem todos são aconselháveis. Ainda há muito “para e siga” em rodovias afetadas pelas enchentes de 2024.
E a máxima “onde tem pedágio tem estrada, onde não tem pedágio não tem estrada”, é bastante aplicável às rodovias gaúchas. Ao norte do estado estão as áreas mais precárias. À medida que nos aproximamos das regiões econômicas mais dinâmicas, a pista melhora.
TRAGÉDIA NO RESTAURANTE
Se você não se importa com o “Wase” a todo momento berrando a presença de buracos na pista, o caminho por Erechim/Passo Fundo/Bento Gonçalves/Veranopolis oferece alguns atrativos, notadamente nas travessias sobre os rios Uruguai e Antas.
Nessa última, a Ponte dos Arcos é uma atração à parte. Havia um restaurante em cada extremidade da ponte construída em 1952. Um deles foi esmagado pelos deslizamentos de terra da enchente, matando o jovem casal de proprietários. A fotografia deles está exposta no restaurante que restou. As marcas da tragédia ainda estão muito vivas e os morros “rasgados” de cima abaixo são como cicatrizes a lembrar daquele maio de um ano atrás que devorou 184 vidas humanas.
OLHO DE GATO EXTINTO
Alerta importante: evite viajar pela serra à noite. Acostamentos são raros, defensas arrancadas e a sinalização da pista sempre precária, incluindo “olhos de gato”, acessório em extinção.
A chegada ao destino no sentido norte/ sul é por Nova Petrópolis, onde visitamos a Cidade Zaandam, apresentada como “um pedaço da Holanda no Brasil”. Além da área gastronômica, é possível conhecer Robert, apresentado como o maior homem que já viveu. Um boneco dele em tamanho real está sentado ali, embora uma moedinha o coloque em pé para dimensionarmos sua estatura: 2,70 m. Outra atração deste enclave europeu no Rio Grande do Sul é o pinheiro multissecular. Foi preciso vencer pouco mais de dois quilômetros entre a rodovia e um “capão” de mata nativa para encontrá- -lo após uma breve caminhada. A araucária produz pinhões faz mil anos, segundo uma placa que a descreve.
REFÚGIO FORA DA BALADA
A parada seguinte é na “BC da Serra Gaúcha”, Gramado. Optamos por uma pousada na interior, zona rural raiz mesmo. Volmir, o empreendedor do Palast Haus, construiu um lugar aconchegante, quentinho, limpo e o principal, silencioso.
Não foi sem receio que ele pôs ali, nos fundos do sitio da família, uma pousada para poucos hóspedes. A dúvida era: os sofisticados turistas de Gramado vão se hospedar a sete quilômetros da cidade?
Nós não tivemos dúvida. A viagem vinha com essa pegada, de fugir do barulho, de ouvir as generosas aguadas das fontes limpas que descem do morro.
E o interior de Gramado é diferente. Eles descobriram lá – antes do Zé Schiavinatto em Toledo – que é possível pavimentar os caminhos do interior. A estradinha que liga Gramado à pousada serpenteia pelos morros 100% asfaltada.
O FORMIGUEIRO
Fazia muito frio e a internet foi à loucura com imagens de neve nas serras catarinense e gaúcha. Em Gramado não nevou, mas a ampla lareira alimentada pelas esféricas torinhas de acácia foi de muita utilidade.
Além de aquecer, a luz do fogo, o estalo da madeira queimando parecem nos conectar com a ancestralidade mais remota.
Foi nesse ambiente que deixei mais um livro pela metade. A obra de um jornalista alemão descrevia nobres europeus que perderam seus tronos e se transformaram em meros súditos.
É nesse ponto que chegamos aos turistas gramadianos. Gente muito bem vestida em seus bólidos milionários, agasalhada em roupas de grife, muito chique. Devoram caros cafés coloniais e sequências de fondue (fala-se “fundí”) como se não houvesse amanhã.
Foi aparecer no Insta alguém brincando com boneco de neve na serra em um dia, que na manhã seguinte Gramado virou um “formigueiro”. Foi como uma avalanche. A cidade encheu do dia para a noite.
Cito aqui o habitáculo da formiga para remeter aos nomes curiosos de cidades gaúchas. Formigueiro é uma delas. Mas também há outros nomes atípicos: Mormaço, Anta Gorda, Travesseiro, Sério, Casca, Chuvisco, Espumoso, Passa Sete, Segredo, Tio Hugo e Não-Me-Toque.
TAÇA FERVE BOLSO
Atração que vale ver em Gramado: o Mini Mundo, espaço que reproduz trechos de algumas das cidades mais incríveis do mundo em miniatura, nos detalhes mais caprichosos. Ali também é possível bebericar uma tacinha de chocolate escaldante por menos de cinquentão.
Se o frio não assusta, você pode esquiar no Snowland, um parque temático de neve, de 16 mil metros quadrados, metade dedicado à experiência com o gelo em flocos. Aviso: é congelante.
Poderia dizer algo de Canela, mas o texto já está longo demais, daqui a pouco estará no pescoço, ou no “garrão” do Brasil, Chuí. Então melhor desperdir-se dessa dica de férias com um breve retorno ao Palast Haus, do Volmir e sua mãe de descendência germânica, dona Onir, que nasceu naquele sítio.
Eles são protagonistas e testemunhas da revolução promovida pelo turismo. A atividade econômica ali no pequeno sítio era o “galinheiro”, como chamavam o aviário. Vida dura, rústica, trabalho pesado.
Hoje dona Onir se ocupa de preparar o farto café da manhã servido aos hóspedes em amplo espaço gourmet. Entre as iguarias, quitutes da culinária alemã, cuja receita vem do além mar, e ingredientes locais, como a tangerina, lá descrita como “bergamota”.
LARANJAS E BERGAMOTAS
Das muitas lembranças que levo daquele local bucólico, o que mais grita em meus ouvidos é o silêncio. Me despedi com um ritual que não tem preço: munido de uma faca de cozinha da “alemoa”, fui até o pomar saborear laranjas que - consumidas assim que colhidas - apresentam um sabor inigualável.
Parecer final: visite a serra gaúcha, hospede-se na zona rural e consuma a “bergamota” colhida no pé. Ah, no retorno, pesquise restaurantes panorâmicos envidraçados que trazem no cenário o imponente rio Uruguai cavando o vale profundo há milênios.
Agradecimentos: Prôfe Sheyla por suportar rompantes do ranzinza que relutava em frequentar o “formigueiro” de Gramado; Dudu e Bia, enteados queridos, silenciosos e pacíficos. Agradeço também o canário-da-terra que surgia toda manhã na sacada do quarto e o Eloi Jensen pelo providencial empréstimo do sobretudo siberiano.