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10 mil “tias” do cafezinho

Entenda como o filtro do café coado por dona Dilma, do bairro Santa Cruz, periferia Oeste de Cascavel, foi parar em uma escultura apreciada em castelo medieval europeu pela rainha da Espanha e outros nobres de sangue azul

10 mil “tias” do cafezinho

O vestido de filtros de café coados, costurado em Cascavel na obra Gaia e exposto na Europa: 15 metros de cauda, 10 mil filtros e muitas Marias das periferias


O olhar perspicaz da curadora, Ana Carolina de Villanueva, proprietária da Luka Art Gallery instalada no Palácio Biester, em Sintra - Portugal, ao ver por fotos a escultura Gaia, criada pelas artistas cascavelenses Malu Rebelato e Nani Nogara, do Coletivo Duas Marias, já sabia que a majestosa obra poderia alçar voos maiores.

Em 2024 levou a escultura para uma exposição em sua galeria, onde mensalmente promove eventos com artistas consagrados mundialmente. Já realizou exposições com Hans Donner, Cristina Oiticica, Blake Jamieson e de outros grandes nomes das artes internacionais.

“Ter a única galeria de arte contemporânea instalada em um palácio do século XIX, de toda a Europa, é algo incrível. Por isso procuro fazer exposições e vernissages que surpreendam sempre ao artista e aos convidados. Todos esperam pelo extraordinário”, diz a curadora, que já viveu em vários países, inclusive no Brasil.

A escultura Gaia é extraordinária, impactante e majestosa com suas grandes proporções mais de 2 metros de altura, 180 centímetros de circunferência e 15 metros da “manto” ou cauda.

Trata-se de um construção em um ambicioso e dedicado trabalho de costura e modelagem do tecido na confecção de um vestido unindo mais de 10 mil coadores de papel de café coados por mais de 10 mil mulheres de várias partes do Brasil, que compõem uma estrutura corporal impecável. Mas, acima da sua capacidade técnica, a obra foi muito além na sua contextualização conceitual.

Intrinsecamente, a escultura traz as histórias e representa a resiliência de todas as mulheres do mundo, que ao acordarem fazem seu café e seguem suas tarefas cotidianas, não importando a classe social, suas perdas e ganhos, alegrias e tristezas, seguem fortes com fé o seu dia. “O mais comovente é pensar que, talvez aquele café, tenha sido o último daquela mulher”, pontua Carolina.

É com esta perspectiva de força, determinação e potência feminina, Gaia nasceu da terra, do café brasileiro e representa também a deusa da mitologia grega, a Mãe Terra, umas das divindades primordiais e a personificação da mãe de todos os seres vivos no planeta. Todas essas características, dessa obra monumental, comoveram os jurados do Prêmio Rainha Sofia da Espanha, que neste ano completa a 60ª edição.

“MILHARES DE MARIAS”

Com o impacto e comoção gerados pela Gaia, a escultura foi selecionada entre mais de 500 obras apresentadas de artistas de todo o mundo e foi uma das finalistas do prêmio. A vernissage aconteceu dia 27 de fevereiro último, na Casa de Vacas do Parque del Retiro, em Madrid – Espanha, com a exposição de 67 obras selecionadas pelo comitê entre esculturas e pinturas.

“Apresentá-la ao comitê técnico representando a alma e a voz das artistas, foi muito além das minhas melhores expectativas”, afirma a curadora. “O prêmio foi entregue pela própria Rainha Sofia em cerimonial fechado e protocolar, e ali não estava apenas uma escultura ao longo dos 60 anos de concurso, mas a representação da resiliência e da força feminina, da união não mais apenas de 10 mil mulheres, mas de milhares de Marias de todo mundo, rainhas de suas próprias vidas costuradas pelas mãos das artistas Malu e Nani, de indescritível genialidade”, conclui Ana Carolina de Villanueva.

ESPANHOLA QUE CRESCEU NO BRASIL

A curadora e diretora proprietária da Luka Art Gallery, Ana Carolina de Villanueva, recebe em sua galeria consagrados nomes das belas artes em exposições mensais. É conhecida ainda por suas excêntricas e exuberantes festas, como foi a Gala de Natal, com apresentação de canto sacro de 50 vozes do Mosteiro dos Jeronimos e o famoso Baile de Máscaras.

Carolina é de origem espanhola, mas cresceu no Brasil, é arquiteta e urbanista, especializada em restauração do patrimônio histórico, com mestrado em restauro sacro com ouro e policromia e doutora em arte e cultura. Já morou em vários países, visitou mais de 40 trabalhando para uma multinacional e hoje reside em Portugal.

SOBRE AS ARTISTAS MALU REBELLATO E NANI NOGARA

De Cascavel, Paraná, região sul do Brasil, as artistas Malu Rebellato e Nani Nogara, do Coletivo Duas Marias, são formadas em artes visuais e pós-graduadas em arte-educação. Iniciaram seu trabalho artístico em conjunto no segundo semestre de 2013. 

Nesta trajetória estão costurando ideias e conceitos sempre com o objetivo e valorizar a imagem da mulher, sua força e luta. Já realizaram importantes exposições no Brasil com a escultura Gaia, no Museu Oscar Niemeyer e, recentemente, em Portugal, na Luka Art Gallery no Palácio Biester. A intenção das artistas é poder levar Gaia ao redor do mundo, através da curadora Ana Carolina Villanueva, que as representa internacionalmente.


Pitaco do Pitoco - Tia do cafezinho foi à vossa majestade!

  • Não é trivial que um obra cultural produzida em Cascavel e por cascavelenses seja selecionada entre 500 inscritos para uma exposição real na Espanha, com direito a presença de gente do sangue azul, da nobreza européia.
  • Mas também não assusta. Já sabíamos da importância da “tia do cafezinho”. Uma anedota maliciosa conta que o “chupa-cabras” ou qualquer outro animal mitológico vinha devorando vereadores na Câmara de Cascavel.
  • Sabe-se lá porque, ninguém notava a ausência dos devorados. Quando o bicho pegou a tia do cafezinho, o Legislativo veio abaixo, ela sim, fazia falta. Pura maldade.
  • Me recordo da dona Leda, senhora gentil e tímida, servidora pública do estratégico setor do cafezinho nos anos 1990. Ela servia a turminha da imprensa ali no Paço das Artes, no tempo em que o prédio abrigava a Prefeitura.
  • Sempre com um lenço ornando a cabeça e avental, dona Leda produzia um chá gelado que vinha espumado, cremosidade para fazer inveja a propaganda da Brahma. Ela era fundamental, imprescindível, insubsituível.
  • Pensar que senhorinhas da periferia de Cascavel, perfil dona Leda, que mora ou morava na distante Porção Sul do município, contribuíram para produzir a escultura Gaia é algo lancinante.
  • O filtro coado por tantas Marias das periferias transformou-se em obra de arte pelas mãos mágicas da Malu e da Nani.
  • A lastimar que, diferente dos curitibanos, que puderam apreciar a obra “coada” em Cascavel através da exposição no Museu de Arte Contemporânea do Teatro Oscar Niemayer, nós cascavelense poderemos apreciar Gaia somente pelas fotografias dessas páginas.
  • Gaia e sua longa cauda de 15 metros vão permanecer na Europa, com reais possibilidades de expor suas “marias” em Roma, Londres e Paris. De toda forma, de alguma maneira, o cafezinho extraído pela dona Maria do bairro Santa Cruz está imortalizado nas manchas da borra de café, que põe tons de pele humana em Gaia, perenizando a tez e os poros das marias das periferias.